Série PCAB: Transformando Vidas

Conhecimento de anciãos - compartilhando o passado para fortalecer o futuro

Valorizar o conhecimento tradicional das populações que vivem na floresta e fomentar organizações locais estão entre os focos da Parceria para a Conservação da Biodiversidade na Amazônia (PCAB). Tudo isso visando a contribuir com a implementação de soluções sustentáveis, que possam gerar renda para as comunidades e preservar a biodiversidade.

Em 2020, a PCAB ajudou, por exemplo, a fortalecer 20 planos de manejo, cobrindo 46 milhões de hectares na região amazônica. Destes, 32% estavam em territórios indígenas e 56% apoiaram o uso sustentável e meios de subsistência. 

Através desses planos, moradores locais, com o apoio de instituições parceiras, vêm implementando sistemas de manejo sustentáveis para produtos da floresta -- como castanha-da-Amazônia e madeira -- e obtendo recursos. Nesse processo, são incorporados os conhecimentos tradicionais transmitidos entre gerações por anciãos das comunidades, sejam elas indígenas, ribeirinhas e quilombolas. 

Nesta edição, apresentamos os relatos de "dona" Maria Luiza e do indígena Alberto, dois anciãos que vivem em áreas da Amazônia atendidas por projetos apoiados pela PCAB e com importante papel na história de seus povos. 

1 - A autodidata que ajudou a criar Unidade de Conservação na Amazônia 

Nascida em uma comunidade no interior da Amazônia, Maria Luiza Barbosa Ribeiro aprendeu com o pai a conhecer a floresta e a lutar pela terra onde morava. E foi da tristeza de ver a mãe morrer em um parto que floresceu a aptidão de parteira, atividade desenvolvida ao longo dos anos juntamente com as tarefas de professora.

Sem cursar o ensino em escolas oficiais, ela participou de movimentos de alfabetização e estudou sozinha usando o método Paulo Freire -- educador brasileiro que desenvolveu nos anos 1960 uma metodologia para alfabetizar jovens e adultos a partir das experiências do próprio aluno e de palavras já conhecidas.

Hoje, aos 82 anos, "dona" Maria Luiza, como é chamada na comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Rio Arimum, conta com orgulho dos anos de luta que resultaram na criação da Reserva Extrativista Verde para Sempre, no município de Porto Moz (Pará). A Resex é a maior do Brasil, com quase 1,3 milhão de hectares, e atualmente tem duas cooperativas e sete associações com planos de manejo ativos.

Essas organizações locais participam de projetos desenvolvidos com o apoio da PCAB e USAID/Brasil por meio de parceiros, como o Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e o Comitê de Desenvolvimento Sustentável de Porto de Moz (CDS). Os parceiros têm realizado ações de fortalecimento dos arranjos locais para atender à realidade e às demandas das comunidades (conheça mais aqui).

"Nossa luta é pela terra e para preservar a floresta. Nessa região sempre houve muita pressão de grileiros, de madeireiros… Nos organizamos, tivemos muito trabalho durante anos, até que conseguimos a criação da reserva em 2004", relembra Maria Luiza, que chegou a receber ameaças enquanto liderava o processo juntamente com o sindicato dos trabalhadores rurais e com a paróquia. 

A criação da Resex em meio a conflitos pela disputa da área foi estratégica no combate ao desmatamento, que avançava na região com a abertura de estradas ilegais. A demarcação reduziu a taxa de área devastada de 1.413 km², em 2003, para 53 km², em 2006.

Além da atuação nessas ações, Maria Luiza ajudou a montar associações na comunidade e se engajou em movimentos de mulheres para incentivar a participação no dia a dia das questões locais.

Transmissão de conhecimento - Segundo a anciã, os ensinamentos que recebeu do pai ajudaram a marcar sua trajetória na comunidade. "Sempre busquei repassar as histórias, valorizar a simplicidade e a vida", completa Maria Luiza, responsável por mais de 200 partos, sendo o último quando nasceu a própria bisneta.

Mãe de cinco filhos, sendo quatro mulheres, ela afirma que procurou transmitir para as próximas gerações a fé e o amor pela natureza. E está dando certo. 

O filho, Genésio da Silva, já foi presidente da Associação Arimum e uma das filhas, Margarida Ribeiro da Silva, é líder comunitária e voz atuante pela preservação da biodiversidade, contemplando o papel das comunidades tradicionais da Amazônia. Em 2018, Margarida recebeu o prêmio internacional Wangari Maathai Forest Champions, dedicado a pessoas que trabalham para conservar florestas e melhorar a vida dos que dependem delas. "Minha mãe é um símbolo de conhecimento, resiliência, coragem e humanidade. É uma referência", resume Margarida.

Ao ser questionada sobre a mensagem que costuma transmitir aos jovens, Maria Luiza resume: "Continuem sempre trabalhando a favor dos que mais precisam, orientando pequenos agricultores, moradores da floresta sobre como conservar a natureza e a vida, seja a dos peixes, dos animais, das árvores e do homem". 

2 - O resgate da cultura do povo indígena Krahô nas histórias do ancião

Responsável atualmente por fazer acompanhamento de projetos em Terras Indígenas (TIs) dos povos Timbira nos Estados do Maranhão e Tocantins, Alberto Hapyhi Krahô guarda na memória relatos sobre a identidade de seu povo. Mas também é um dos que construíram um pedaço dessa história.

Nascido na aldeia do Galheiro, em 1954, Hapyhi ainda criança se mudou com os pais para uma fazenda, em uma época em que poucos indígenas Krahô sabiam palavras na língua portuguesa. Na adolescência, frequentou a escola e começou a atuar em movimentos organizados para defender interesses de seu povo. 

Foi por meio da música e da corrida de toras, uma tradição indígena, que Hapyhi ajudou no início dos anos 2000 a alertar para problemas que as aldeias na região vinham enfrentando, como o avanço do desmatamento e da grilagem de terras. Ele e outros indígenas promoveram em Brasília (capital do Brasil) uma corrida de toras para chamar a atenção do governo, além de deputados federais e senadores, para um encontro que ficou conhecido como “Grito do Cerrado”.  

As corridas de tora são competições de revezamento realizadas com troncos de madeira e reúnem toda a aldeia. O tipo de madeira utilizada, as pinturas e as músicas entoadas dependem de cada ritual -- nascimento, morte, mudanças das estações do ano, colheita, entre outros (saiba mais aqui).

Anos antes, ele já havia participado da fundação da Associação Wyty-Catë. Agora, é por meio do fortalecimento das festas tradicionais que quer continuar passando às futuras gerações o modo de vida.

“Alguns costumes têm ficado para trás. As festas são uma maneira de ensinar aos jovens nossa cultura e os significados, por exemplo, de furar as orelhas, das pinturas, da forma como cultivamos nossas roças”, diz Hapyhi, lembrando que a realização de eventos neste ano dependerá das medidas sanitárias previstas durante a pandemia de COVID-19.

As festas em aldeias da TI Kraolândia acontecem normalmente em períodos de seca, a partir de abril. Em épocas de chuvas, são mais comuns a pesca e a caça. 

A TI é uma das que participam do projeto de diagnóstico de impactos ambientais e de cursos de Gestão Ambiental e Territorial Integrada de Terras Indígenas na Amazônia Oriental, apoiados pela PCAB. 

Criado por meio de um acordo de cooperação entre a USAID/Brasil e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o programa tem também a participação da Wyty-Catë e de outros institutos e organizações locais com o objetivo de melhorar a gestão territorial e ambiental em TIs no Maranhão e em Tocantins (mais informações aqui). 

“Nas aldeias explicamos como os projetos são montados, o que deve ser feito e encaminhado. A pandemia de COVID assustou muitos indígenas e parou muita coisa. Esperamos retomar logo”, diz Hapyhi.

Aos 66 anos, o indígena afirma que ainda aprende muito com sua mãe, que está com 101 anos e é do povo Apinajé. “Falamos das roças, da alimentação, das lutas pela terra e por nossos direitos. Isso que procuro passar para meus filhos”, completa ele.