Indígenas Apinajés formam a segunda brigada voluntária totalmente feminina

40 mulheres indígenas fizeram treinamento em campo no Tocantins

Novembro, 2022 - Para encontrar árvores frutíferas, é preciso ir cada vez mais longe na floresta amazônica. As folhas das palmeiras para refazer os tetos das casas em comunidades tradicionais estão mais escassas e a caça também. A constatação está no depoimento de Indígenas Apinajé e vai ao encontro de um triste dado: cresce a cada ano o número de incêndios florestais no Brasil. Entre janeiro e outubro de 2022 foram registrados cerca de 2,5 milhões de hectares de floresta queimados, sendo quase dois milhões na Amazônia, segundo o MAPBIomas. 

No Tocantins, entretanto, os esforços conjuntos para diminuir os incêndios na Amazônia receberão um reforço poderoso: a segunda brigada indígena voluntária totalmente feminina do Brasil. São 40 mulheres Apinajé que depois de intenso treinamento em campo e na sala de aula aprenderam como combater incêndios florestais e como fazer queima prescrita para proteger o seu território, uma área de 142 mil hectares localizada entre os rios Araguaia e Tocantins. 

O curso foi realizado pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Prevfogo/Ibama), em parceria com o Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS) e o apoio da USAID/Brasil no âmbito do Programa de Manejo Florestal e Prevenção de Fogo do Brasil. No ano passado, também no Tocantins, o programa formou a primeira brigada indígena voluntária feminina com  29 mulheres Xerente.

O curso de formação da brigada voluntária indígena feminina Apinajé também contou com o apoio do Fundo Casa Socioambiental, da Fundação Nacional do Índio - Funai/TO e dos municípios de Tocantinópolis, Cachoeirinhas e Maurilândia.

Única mulher que já participa da brigada indígena contratada dos Apinajé há dois anos, Salma Apinajé estava ansiosa para ter outras mulheres na próxima temporada de fogo. “É muito ruim ser a única mulher. Eu não tenho com quem conversar. Eles (os homens) conversam e eu fico de longe olhando. Se eles falam uma coisa, eu sorrio, mas fico com vergonha de falar com eles”, explica Salma. 

Tímida, Salma conta emocionada que é mãe solo de uma menina “sabida” de três anos que coloca a roupa de brigadista da mãe e fala que quer “tacar fogo” também. Apesar de lamentar ficar mais tempo longe da filha do que gostaria, Salma diz que gosta do que faz, precisa trabalhar para dar uma vida melhor para a filha e para os pais e sabe da importância do trabalho para a preservação do meio ambiente. 

Quebra de paradigma - Quem também está preocupada com as próximas gerações é Keli Apinajé, mãe de cinco filhos que ficaram aos cuidados da avó para ela participar do curso. "Eu penso no futuro dos meus filhos. Mas as pessoas não pensam em nada. Este ano mesmo, a maioria não vai ter pequi, bacuri, nem cajuí. Ano passado colhemos, mas este ano queimou tudo. Tanta destruição. Isso dói tanto em mim", lamenta a indígena. 

Keli estava insegura se passaria na prova teórica e nas atividades de campo, mas com a certeza de que persistir é importante, ficou e ainda convenceu algumas colegas que estavam com a mesma insegurança a ficarem. Sorte da Amazônia. Keli gabaritou a prova e já despontou como líder de brigada. 

“A brigada veio somar e dar protagonismo às mulheres Apinajé. Nosso espaço de liderança é recente. Culturalmente as mulheres cuidam da roça, da casa e das crianças. Mas já temos sete caciques mulheres no nosso território”, afirma Maria Aparecida Apinajé, a Cida, uma das lideranças que buscou a parceria para levar o curso até a comunidade com intuito de garantir a preservação dos territórios e da cultura para as futuras gerações. 

Professora bilíngue, ela explica que além de destruir os recursos naturais fundamentais para a alimentação e construção das casas, o fogo destrói também a cultura local ao impedir, por conta da fumaça, as festividades, ou mesmo as cerimônias de cura realizadas pelo pajé com as ervas medicinais, cada vez mais difíceis de encontrar. "Temos lutado contra desmatamentos, madeireiros e grandes empreendimentos ao redor do nosso território", garante Cida. 

No período de 2014 a 2019, as mulheres representaram, em média, apenas 5% das brigadas florestais contratadas no Brasil, conforme estudo técnico elaborado pelo USFS e revisado pelo Prevfogo/Ibama e ICMBio. Além do fogo, elas enfrentam a discriminação de gênero nas atividades, segundo Ana Luiza Violato Espada, especialista em Gênero e Governança Florestal do Serviço Florestal dos Estados Unidos.

“Vimos a partir do estudo que normas culturais de gênero impedem as mulheres de entrarem na brigada ou exercer as atribuições que elas gostariam. Muitas vezes as mulheres são impedidas de fazer o trabalho que gostariam de fazer, ao serem colocadas para fazer o trabalho na cozinha ou apenas no restelo quando estão em campo”, explica Ana, ao enfatizar que os dois trabalhos são importantes, mas que devem feitos por escolhas e não como únicas opções. 

Entusiasta da iniciativa, Alexandre Conde, supervisor estadual do Prevfogo/Ibama no Tocantins, esteve a postos todos os dias para, na língua mãe dos Apinajé, tirar todas as dúvidas das alunas sobre as atividades passadas pelos instrutores. Muitas delas têm grande dificuldade com o Português. Antropólogo de formação, Conde chegou à região há 30 anos para ensinar a estrutura escrita da língua aos indígenas. Em 2013 atendeu a um convite do Ibama para montar uma brigada indígena Apinajé, única das oito etnias do estado que ainda não tinha formado uma. Passados 10 anos, já são 110 brigadistas indígenas no Tocantins. 

Os indígenas são excelentes brigadistas, garante Conde, porque conhecem o território e ainda têm comunicação fácil com os povos locais. A brigada feminina veio somar em um momento importante: "É um grande feito. É a valorização do poder da mulher dentro da cultura Apinajé. E isso vai fortalecer a questão da conservação e preservação da área", acredita Conde. 

Manejo Integrado do Fogo - O Manejo Integrado do Fogo (MIF) para combater incêndios florestais é uma atividade relativamente recente no Brasil. Em resumo, o MIF consiste em diversas estratégias de planejamento e gestão para prevenir e combater os incêndios florestais. Uma dessas estratégias é a queima prescrita, prática de colocar fogo de forma controlada em áreas estratégicas. É preciso diferenciar a queima prescrita dos incêndios florestais. Enquanto o primeiro é um fogo controlado, feito na época das chuvas e ajuda a prevenir incêndios severos, o segundo é descontrolado, geralmente de grandes proporções e pode ser causado por fenômenos naturais ou atos criminosos, o mais comum. 

No território Apinajé, todos os anos brigadistas discutem com a comunidade os lugares mais importantes de preservação como aldeias, lugares sagrados e fontes de água para aplicar o uso do fogo ao redor dessas áreas. Dessa forma, no período crítico de seca o fogo encontra a área que já foi queimada e tem um impacto bem menor para a comunidade. 

E as ações de prevenção aos incêndios florestais não param no curso. Os próximos passos das brigadistas indígenas Apinajé incluem atividades de coleta de sementes e produção de mudas, queima prescrita e intercâmbio com outras brigadas indígenas do Tocantins e Maranhão. Essas ações estão previstas no planejamento do projeto aprovado recentemente pelo Fundo Casa Socioambiental e que conta com a assessoria técnica do USFS, outra grande vitória para essas mulheres que se consideram Mē nija kuwy pa xwynh (aquelas que apagam fogo).