Indígenas Apurinãs resgatam e celebram sua cultura
Os índios Apurinã, que vivem ao longo do rio Purus no sul do estado do Amazonas, identificaram a necessidade de valorizar e fortalecer a própria cultura dentro dos projetos implementados pelas associações indígenas. As lideranças de Pauini viram na concessão de pequenos projetos diretamente a associações indígenas - promovida pela PCAB e implementada pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) - uma oportunidade de fortalecer o contato entre as aldeias do rio Seruini, praticar e repassar conhecimentos.
No final de junho, promoveram a festa anual Kyynyry (ou xingané) com convidados da TI Marienê, entre eles D. Elza, uma anciã de 106 anos que vive na Terra Indígena Peneri/Tacaquiri e não visitava aldeias às margens do rio Seruini há mais de 50 anos. Ela é a Apurinã mais velha da região.
“A cerimônia é feita por homens considerados guerreiros do povo. São eles que procuram o alimento como a carne de caça, peixes e frutas para os convidados, que são preparadas pelas mulheres”, explica Alex Sena, Coordenador Regional da Federação de Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp). O contato dos Apurinã com o mundo exterior acontece desde a metade do século 18 e, por isso, a cultura deste povo foi bastante afetada pelos ciclos da borracha.
Segundo Marina Villarinho, assessora do Programa dos Povos Indígenas do IEB, “na época da borracha as parentelas Apurinã foram coagidas a não se expressarem em sua língua e a não repassarem os costumes nativos. Uma das estratégias de sobrevivência foi omitir a própria cultura – que, no entanto, ainda marca práticas e saberes atualizados em cerimônias, como o xingané”. Também dentro do Projeto de Pequenos Projetos da PCAB, a Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Pauini fez um levantamento sobre a saúde da língua e a cultura do povo. Qualificados durante uma oficina, dois grupos de jovens foram às aldeias pesquisar quantos são os falantes da língua e elencar quais técnicas e tecnologias nativas são encontradas em cada terra indígena. O diagnóstico está em fase de sistematização.
A preparação e realização da festa xingané permite a prática e transmissão de conhecimentos tradicionais sobre o território: áreas de caça e de pesca, cultivo de plantas tradicionais, pintura corporal, obtenção de cipós para confeccionar os paneiros – cestos onde as mulheres guardam a carne moqueada (assada em grelha e defumada pela fumaça, para conservar o alimento) e de palhas para as saias usadas nas apresentações de dança.
É preciso conhecer também o jogo de composição de cores dos cocares, o tempo de amadurecimento das frutas, o ciclo da lua cheia para iluminar o terreiro durante a festa. Além disso, também é necessário dominar os passos das danças, conhecer o local onde vivem os cantores, sobre o que falam as músicas e ter o domínio da língua – que vem se restringindo a pouco falantes. A festa é, essencialmente, uma forma de gestão do conhecimento da vida Apurinã.
Esse xingané foi de encontro e serviu para reaproximar os parentes, de fazê-los reviver memórias do tempo passado, dos encontros e pertencimentos. É por isso que se destaca a história da dona Elza, a kyru mais velha do município de Pauini.
Neste reencontro dela com o rio, as paradas nas aldeias foram regadas a muitos abraços, a muitos “abençoamentos” dos vários sobrinhos, dos netos, de filhos que ela criou ao longo da vida, de lembranças dos locais e das pessoas com ela conheceu no rio. Ela voltou ao rio Seruini acompanhada da neta, Antonia Julião, e da bisneta, Ágata, de cinco anos. A índia centenária cantou e puxou a dança, em passos lentos e com sua voz suave, porém firme.
Nas palavras de Teixeira, cacique da aldeia Kamarapa, “o xingané é pra isso também, pra gente aprender.” Teixeira falou da emoção que sentiu na última música, cantada na despedida dos parentes, como encerramento da festa, o fez lembrar-se de seu pai já falecido e que chorou enquanto dançava.
Dário Lopes Apurinã (Kakoyori) é cacique da aldeia Bom Jesus, organizadora da festa e foi um dos cantores do xingané. Depois que todos os convidados chegaram, seu Dário os chamou para uma conversa sobre a importância da festa para o povo Apurinã como um momento para que todos relembrassem o passado a fim de fortalecer os ensinamentos. Esse foi um momento também de agradecer pela colaboração de todos e de reconhecimento de que a manutenção da cultura viva é responsabilidade de todo o povo Apurinã.
Valorização da cultura e gestão territorial
Já há alguns anos as aldeias realizam o “Encontro do Seruini”, onde discutem e deliberam sobre assuntos internos e ações com instituições externas. Um dos temas destacados como desafio para as aldeias tem sido justamente a valorização da cultura por meio da realização do kyynyry, razão pela qual a festa foi tão esperada e contou com o envolvimento de todas as aldeias.
A atividade foi realizada através do Programa de Pequenos Projetos da PCAB, implementado pelo IEB, em parceria com a Operação Amazônia Nativa (OPAN) dentro do guarda-chuva do Projeto Nossa Terra. Os pequenos projetos promovem a melhoria na qualidade de vida nas comunidades representadas por organizações indígenas das calhas dos rios Purus e Madeira.
O Nossa Terra, que conta com outros financiadores além da PCAB, apóia a gestão das terras indígenas no Sul do Amazonas por meio da geração de alternativas econômicas sustentáveis, da proteção territorial, da recuperação ambiental e do fortalecimento dos modos de vida tradicional para a redução do desmatamento. Desde o início do projeto, em setembro de 2016, as associações indígenas da região vêm demonstrando potencial cada vez maior para gerir com autonomia seus pequenos projetos.
Wallace Apurinã, Coordenador da Opiaj explica que eles são importantes porque em 300 anos de contato na região do Purus “temos o desafio de reafirmar e de manter nossa cultura, o que é ser do povo Apurinã”.