Apostando em um novo ciclo da borracha para melhorar condições de vida e conservar a floresta

Em meio à pandemia, uma fábrica de borracha natural no Pará está conseguindo não só pagar mais que o dobro do preço de mercado para seringueiros, como também produzir artigos de borracha natural usando uma tecnologia sustentável, com base em técnicas tradicionais indígenas. Encabeçada por Francisco Samonek, a fábrica de Castanhal fica a uma hora de carro de Belém e produz sandálias de dedo, artigos para casa e acessórios sem poluir a água ou o ar.

A cooperativa. certificada como orgânica, na qual os seringueiros cooperados são donos da fábrica e dividem seus lucros, contribui para manter a floresta e suas seringueiras de pé. E foi criada como resultado da tese de mestrado de Samonek na Universidade Federal do Acre - estado de Chico Mendes, o seringueiro mais famoso do país. 

Ele combinou a técnica tradicional de beneficiamento de látex (encauchados) com pesquisas científicas e patenteou uma tecnologia que lhe rendeu vários prêmios de inovação e de tecnologia social nos últimos 20 anos. A cooperativa Encauchados da Amazônia foi selecionada como uma das quatro startups que receberam investimentos através da Plataforma de Parceiros pela Amazônia (PPA) e entrou no primeiro grupo de pequenas empresas baseadas na Amazônia  que participaram do Programa de Aceleração da PPA. 

Idealizada pela USAID/Brasil como parte de sua estratégia de engajamento do setor privado, a PPA tem atraído empresas locais, nacionais e multinacionais comprometidas como um novo modelo de desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira. 

Durante o primeiro Fórum de Impacto de Investimentos e Negócios Sustentáveis (FINSA), em 2018,  a gestora de negócios de impacto NESst (Nonprofit Enterprise and Self-Sustainability Team) escolheu investir e dar mentoria à cooperativa, rebatizada de Seringô no ano seguinte. Como uma das pioneiras em investimento de impacto no Brasil, a  NESsT, seleciona negócios sociais e os auxilia a ganhar escala com incentivos que vão de doações a investimentos de impacto. 

“Até dois anos atrás a fábrica era mais um laboratório”, conta Samonek. Com apoio da PPA, a cooperativa criou um plano de negócios e desenvolveu uma compreensão melhor de sua necessidade de  investimentos, começou a calcular seus reais custos e conseguiu passar a definir as margens de lucro almejadas. A profissionalização do negócio, combinada com a troca de nome da marca e as oportunidades de marketing e de networking proporcionadas pelo Programa de Aceleração ajudaram a atrair o interesse de varejistas como a paulista Benglô, que comercializa produtos da floresta no mercado de luxo da cidade mais rica da América Latina. 

A pandemia de COVID-19 adiou os planos de ampliar a produção e de associação com grandes marcas,  mas a Seringô está na fase de criação e lançamento de uma nova coleção que será comercializada em venda direta no Mercado Livre - um dos mais novos membros da PPA. A conhecida plataforma online está ajudando a Seringô e outras nove startups ligadas ao Programa de Aceleração a comercializar seus produtos amazônicos de comércio justo na internet.

Renascimento  - Maria Angélica Correa recebeu treinamento da Encauchados há cinco anos juntamente com outras mulheres de Vila Franca. Elas aprenderam a fazer artesanato de borracha natural e foram as iniciadoras do renascimento da tradição da extração da borracha na região.. 

Vila Franca é uma em mais de 70 comunidades dentro da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, que leva o nome dos dois principais rios que margeia. A vila à beira das águas azuis e transparentes do Arapiuns viu a economia com base na extração do látex entrar em colapso há cerca de 30 anos, com o desaparecimento de compradores. A maioria dos jovens migrou para Santarém e a população que ficou depende de transferências do governo para sobreviver. 

Angélica, como é conhecida na comunidade, sempre trabalhou como artesã, mas perdeu a mobilidade por problemas de saúde e já não podia mais buscar palha na floresta para fazer seus cestos. Ela recebe cerca de R$ 100 mensais do Bolsa Família, o que não é suficiente para sustentar os dois filhos. A criação de um grupo de artesãs locais a ajudou a duplicar a  renda familiar com a venda dos produtos para turistas através da loja da Associação da Resex (Tapajoara) em Santarém. 

A Seringô, assim como as artesãs, pagam R$ 5,00 por quilo de látex aos seringueiros, mais do que o dobro do preço mínimo, de R$ 2,00. Em novembro de 2019, ela e o grupo de artesãs que coordena, juntamente com uma artesã quilombola de Oriximiná e outra que vive numa comunidade da vizinha Floresta Nacional do Tapajós, receberam uma oficina da cooperativa para produção de biojóias e acessórios e trocaram experiências na produção de tecidos emborrachados, bolsas e descansos de mesa com formatos de folhas ou da tradicional vitória-régia amazônica. 

O grupo tem orgulho de contar que produziu as bolsas que integraram o kit de imprensa dado aos jornalistas de todo o mundo que participaram da cobertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. “Trabalhamos dia e noite e conseguimos cumprir os prazos e entregar 500 bolsas,” Correa conta. 

Enquanto as mulheres trocavam experiências e aprendiam ou aperfeiçoavam novas técnicas, Samonek ministrava uma oficina para os seringueiros ensinando melhores práticas de coleta e estocagem. Indígenas locais, que têm seus próprios seringais, também participaram. A Seringô tem como prática garantir o equilíbrio de gênero nas oficinas que ministra. 

Além de produzir para as artesãs locais, os seringueiros de Vila Franca podem agora fornecer látex para a fábrica da Seringô. O preço muito superior ao mínimo fixado pelo governo, pode ser pago porque a cooperativa adianta o lucro da venda dos produtos manufaturados aos cooperados. Agora que as comunitárias têm sua própria fonte de renda, elas também se sentem mais empoderadas e ganharam mais autonomia para usar o dinheiro em suas próprias prioridades. 

Outras oficinas que iriam acontecer em mais comunidades ribeirinhas tiveram que ser adiadas por causa da pandemia e os planos de ampliar a produção e chegar a 220 toneladas de borracha em 2020 também foram afetados. Ainda assim, Vila Franca tem conseguido manter a produção e enviá-la à fábrica de Castanhal. 

“A floresta da Reserva Extrativista tem um potencial enorme,” diz Samonek: “Há  71 comunidades, onde vivem 23 mil pessoas e em todas há seringueiras muito próximas aos vilarejos. Apenas uma pequena quantidade de seringueiras está sendo usada para a produção, então acreditamos que há um enorme potencial de crescimento sustentável”. 

As Reservas Extrativistas são Unidades de Conservação que permitem o uso sustentável de recursos naturais por ribeirinhos e indígenas que ali vivem. Em Vila Franca, como em outras comunidades nos  777 mil hectares da Resex Tapajós-Arapiuns, as seringueiras estão em toda a parte, dentro da floresta e perto das casas. A maior parte foi plantada no final do século 19 pelos primeiros colonos que se fixaram na região, onde já viviam indígenas. Estudos demonstram que para cada quilo de borracha natural produzida, um hectare de floresta é conservado. 

Samonek acredita que esteja próximo de realizar seu sonho de ver um novo ciclo da borracha na Amazônia. Desta vez, com os seringueiros à frente dos negócios, como donos das fábricas, vendendo produtos orgânicos certificados, em parceria com grandes empresas e promovendo um modelo de desenvolvimento sustentável que garanta a conservação da floresta.