Direitos indígenas: a luta por reconhecimento e em defesa do modo de vida tradicional
Agosto, 2023 - “Não existe o povo Guajajara se não tiver a floresta. Não existe a espiritualidade Guajajara sem a água. Naturalmente minha atuação profissional tem que estar relacionada a isso. Meu trabalho como advogada é uma extensão do que sou. Ocupo um espaço em que posso amplificar minha voz e defender o que nós, povos indígenas, sempre defendemos”, diz a advogada Maria Judite da Silva Guajajara, cujo nome indígena é Kari, em homenagem à avó materna, Kari Amora. Ambas fazem aniversário no dia 2 de março.
Nascida na aldeia Ypaw Myz’ym, que em português significa “água que mexe pouco” e, por isso, é conhecida como Lagoa Quieta, Kari foi uma das primeiras indígenas a ingressar em um curso superior na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e a primeira advogada indígena em seu estado.
Hoje, aos 28 anos, faz parte de um coletivo de 10 advogados indígenas que trabalham em rede atendendo comunidades dos nove estados da Amazônia Legal brasileira, onde vivem cerca de 38 milhões de pessoas. Com o olhar de cada um dos povos representados, o grupo atua no Judiciário em questões como acesso a políticas públicas de saúde, educação, combate à violência, proteção de comunidades que vivem em isolamento voluntário, reconhecimento e demarcação de terras e, mais recentemente, na ação que trata do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF).
(Na foto Ivo Macuxi, Cristiane Baré, Kari Guajajara e Maurício Terena, da esq. para dir.: advogados indígenas no STF - Divulgação/Apib)
Kari é uma dos quatro advogados que defendem a posição contrária à tese em discussão no STF de que os indígenas só teriam direito a reivindicar seus territórios se puderem provar que estavam nele antes de outubro de 1988, quando foi promulgada a atual Constituição Brasileira. O julgamento da ação foi retomado na última semana de agosto, após um dos ministros ter solicitado em junho prazo adicional para análise.
Atualmente, Kari atua como assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), juntamente com Cristiane Baré, e da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA). Ambas as organizações receberam apoio financeiro e técnico da USAID/Brasil para fortalecer suas capacidades institucionais e avançar em suas prioridades de gestão territorial para melhorar e proteger os direitos dos povos indígenas na Amazônia Legal brasileira.
O apoio se deu por meio do projeto Gestão Ambiental e Territorial Integrada de Terras Indígenas na Amazônia Oriental, realizado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), juntamente com o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e parceiros locais que apoiaram atividades nos complexos territoriais Jê Timbira e Tupi (conheça mais aqui).
Além da proteção ambiental, a USAID contribuiu para outras ações realizadas pela organização, que incluem esforços conjuntos para auxiliar na obtenção de documentos de identificação, resolver disputas e engajar na criação de uma Ouvidoria Indígena no Sistema Judiciário do Maranhão. “Mesmo tendo sido um apoio institucional específico para a COAPIMA, observamos que o projeto da USAID deu vários frutos, que renderam sementes e continuam tendo resultados positivos”, explica a advogada.
Em seu estado, o Maranhão, o número de homicídios de indígenas, incluindo casos de conflitos pelo território, é um dos mais altos do Brasil, de acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Nos últimos quatro anos (2019-2022), foram pelo menos 32 assassinatos. Recentemente, em julho, uma mulher indígena foi morta no município de Amarante após ter sido abusada sexualmente.
É no território do município que fica a aldeia de Kari, na Terra Indígena Arariboia, onde ela volta com frequência para rever a família. A última vez foi poucos dias antes de viajar para Washington (DC) para receber o prêmio Global Antirracismo, concedido pela primeira vez pelo secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken (leia mais aqui).
A TI está distribuída em seis municípios, englobando uma área de 413 mil hectares (o que corresponde ao território de Cabo Verde) com 232 aldeias, e abriga cerca de 15 mil indígenas Guajajara (autodenominados Tenetehar), além de parte das comunidades da etnia awá, que vivem voluntariamente isoladas.
Ancestralidade - Em sua passagem pela aldeia, Kari participou de um ritual de proteção realizado pela avó; pela mãe, Surama Guajajara; e por duas tias - Cintia e Suluene - às margens do brejo do rio Buriticupu. Emocionada, a advogada reiterou a importância dos povos tradicionais para a conservação da floresta e de toda sua biodiversidade. “Talvez o maior aprendizado que carrego (dos indígenas) é justamente o existir coletivo. A humanidade perdeu muito isso, as pessoas se tornaram individualista, buscam poder.”
O ritual consiste em uma série de cantos tradicionais dos Guajajara, acompanhados ao som do maracá (um instrumento semelhante a um chocalho redondo, feito de cabaça com sementes dentro e adornado com penas e grafismos) e depois um banho nas águas do rio na aldeia, que Kari quando criança dizia ser “seu brejo”.
“Esses momentos dos rituais retratam nosso passado, quem somos. O que aprendemos foi com a natureza, que representa vida para nós, por isso, preservamos e lutamos por ela. A água, as árvores, os animais são tudo para nosso povo”, afirma a avó Kari Amora, cujo nome em português é Maria Santana.
Aos 72 anos, “mãe de sete filhos, 28 netos e 18 bisnetos”, como costuma dizer, Maria é a cacica da aldeia e a anciã de uma família liderada por mulheres.
“Quem olha para nossa família hoje não imagina a trajetória que minha avó, mãe e tias tiveram que fazer para chegar até aqui. Elas conseguiram ter uma força incrível quando não tinham perspectivas. Primeiro porque eram mulheres, mesmo no meio do nosso povo, e depois por serem de família simples. Mesmo assim, a força que elas carregam dentro delas, que nossa avó conseguiu passar, realmente não é deste mundo. Sou muito grata a todas elas, não só pela força espiritual que me trazem, mas porque sou a construção delas”, completa Kari.
Foi a tia Cintia quem alfabetizou a advogada, ainda na aldeia, em tupi e na língua portuguesa. “Sempre foi uma menina muito atenta. Eu gostava de ensinar meus alunos com música, e ela prestava atenção ao canto dos pássaros. Acreditei que Kari seria essa pessoa que é hoje”, lembra Cintia, professora e linguista. Liderança indígena, Cintia atualmente é uma das vice-coordenadoras da Articulação das Mulheres Indígenas do Maranhão (AMIMA), que também já recebeu apoio da USAID/Brasil.
Já a tia Suluene, assistente social e presidente do Instituto Makarapy, ajudava a cuidar de Kari e dos dois irmãos quando criança, enquanto a mãe Surama trabalhava na cidade ou em outras comunidades como agente de saúde, profissão em que atua até hoje.
Superando barreiras - Kari conta que um dos principais desafios ao ingressar na universidade foi vencer o preconceito por ser indígena. “Fui recebida não só com indiferença por outras pessoas, incluindo colegas e professores, mas também com ar de superioridade, de intolerância, seja por minhas pinturas, minha forma de vestir ou de falar. Em vez de me sentir acolhida, me senti diferente e me perguntava se valeria a pena”, relembra.
A advogada também cita as dificuldades no próprio Judiciário, onde ainda enfrenta preconceito por ser mulher e indígena.
Para ela, a advocacia indígena tem um papel de construir pontes buscando respeito entre essas várias realidades. “Os povos indígenas desenvolvem um importante trabalho de preservação ambiental. Mesmo representando 5% da população contribuem com 80% da conservação da biodiversidade.”
Ao ser questionada sobre o resultado do esforço até aqui, Kari conclui: “Vejo que valeu e vale a pena porque, diferentemente do que tentam mostrar para a gente, o Brasil é indígena. A diversidade é uma riqueza do país.”